segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Desventuras de um jantar a dois

Estava tudo normal. A situação permanecia inteiramente sob controle. Tudo transcorria dentro da mais absoluta normalidade, não havendo, portanto, motivo para nenhum cisco de ansiedade ou temor. Podia ficar tranquilo que aquilo era normal. Normalíssimo. Nada de extraordinário. Mas por mais que permanecesse repetindo mentalmente essa interminável ladainha, nunca ia conseguir se convencer da normalidade dos fatos. Ele era um daqueles tipos medíocres, que não interessa a ninguém, passa despercebido mesmo. Sentia em seu íntimo que o único significado para sua existência era arredondar o número de habitantes do planeta. Fora isso, não tinha nenhuma utilidade. Talvez seu próprio reflexo desse conta de suas tarefas melhor do que ele. Enfim, feitas essas considerações, era incapaz de imaginar uma razão qualquer para o convite que lhe fora feito de manhã pelo estonteante espécime do sexo feminino ora sentado à sua frente. E a absurda irracionalidade desse acontecimento fora suficiente para disparar os mais potentes gatilhos bioquímicos dos quais nosso organismo dispõe para nos colocar em alerta contra possíveis perigos. Ou seja, o ar a seu redor subitamente adquiriu densidade esmagadora, suas narinas dilataram-se em buracos que abarcavam com folga as duas coxas de peru depositadas sobre seu prato, seus lábios crisparam-se num movimento repentino e áspero, revestindo-se de uma secura digna de um Saara, seus poros deram vazão a sucessivas gotas de um suor gélido e abundante, que brotava das reentrâncias mais obscuras de seu corpo, os pelos de sua nuca eriçaram-se com uma rapidez que seu pênis nunca conseguiria imitar, e assim por diante. E a cada trocar de olhos, a cada roçar de pernas minimamente calculado, as batidas de seu coração atingiam patamares cada vez mais preocupantes de aceleração. Nem os incessantes sorrisos acolhedores que lhe eram enviados pelo par de lábios carnudos majestosamente tingidos de vermelho conseguiam acalmar a revolução hormonal que se passava dentro dos inúmeros vasos sanguíneos espalhados por sua superfície corpórea. Todo esse crescendo angustiante, por fim, encontrou um ápice a contento: ao encarar seu rosto refletido na bandeja vazia trazida diligentemente pelo garçom, entendeu: ele era o prato principal.

sábado, 19 de dezembro de 2009

Metafísica do nada

Estava lá. Em algum lugar indefinível pelos milhares de palavras que trazia eternamente escondidas em algum recanto obscuro da memória. Bastava saber que estava lá, e não aqui. Pois aqui não poderia sentir azuis e vermelhos como sentia lá. Com algumas leves nuances de rosa no meio. Talvez isso desse uma resposta definitiva para as perguntas que nunca tivera a coragem de fazer. Ou talvez tudo se resolvesse na infindável espiral de ópio que se via obrigada a encarar, numa tentativa deveras inútil de sobreviver. Lá podia ser metafisicamente, ainda que precisasse de remédios substantivadores para suportar a dor de ter uma alma. Somente lá dera-se conta do absurdamente maravilhoso, que trazia consigo o absolutamente terrível, do qual ninguém consegue escapar a não ser despojando-se de tudo o que traga a mínima ideia de autoconsciência. Lá impunha-se uma rígida disciplina desafiadora, sempre com a vaga - mas persistente - esperança de romper os limites do intransponível. Coisa que não teria condição alguma de pensar caso permanecesse aqui, presa num emaranhado de correntes insolúveis a lhe sorver constantes sopros da mente. De qualquer maneira, continuava saboreando a infinidade de azuis e vermelhos que não cessavam de passar bem na sua frente, tentando extrair deles ao menos uma sombra de roxo para apaziguar os ardentes anseios da vontade. Mas - ironia cruel do destino - lá, apenas lá, caiu em si. E embora todo o universo conspirasse para com isso compor uma possante sinfonia em dó maior, ou também uma alegre sonata indefinida em ré, a única coisa que lhe passou pela cabeça foi a certeza de sua sina inexorável. Por mais que tivesse chegado lá, sua vida não passaria de um eterno tender ao infinito, sempre se dissolvendo em amargas cores e assim tornando-se projeção contínua de um não-eu quase morto. Veja bem, quase. Nunca teria a graça de receber um ponto final que acabasse com suas angústias repentinamente. E, então, quando o lá se convertesse em aqui, estaria novamente perdida, pronta pra se jogar inteiramente no primeiro abismo que encontrasse - para descobrir que dentro do espelho a realidade nunca é o que parece ser.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Amenidades urbano-coletivas

Os sacolejos do ônibus eram particularmente inspiradores naquela situação peculiar. E as andorinhas voavam livres por entre um céu encoberto e áspero. Conversas entrecruzavam-se em saltos acrobáticos mirabolantes até atingirem a suave membrana do tímpano do receptor desejado e de alguns (vários) indesejados. Não tivera muita sorte de conseguir um lugar na cadeira dura, de traços antianatômicos, contra tudo o que pregam os mais experientes especialistas do ramo. Sem contar os odores de múltiplas tonalidades que lhe eram servidos logo acima de suas vias respiratórias aéreas pelas axilas mal lavadas (algum dia teriam sido lavadas?) de algum inoportuno usuário de camiseta regata e de forma alguma consumidor de desodorantes. Um cenário, enfim, como poderíamos defini-lo... coletivamente urbano. Ou urbanamente coletivo, talvez. Para todos os efeitos, convidava a uma profunda reflexão de ordem escatológico-moral sobre o que havia esquecido de comprar no supermercado. Sim, porque, além da infinidade de pequenos detalhes acima expostos, ainda devemos acrescentar um razoável número de sacolas plantadas a seus pés, as quais, num dia de frio, fariam o favor de aquecer o retorcido conjunto de joanetes que trazia grudado a seus tornozelos, mas naquele suave calor de uns 40º na geladeira - calor esse que os ursos polares vão ter de suportar dentro de breves anos, até meses (que o digam os sapientíssimos doutos do IPCC) - serviam apenas para estimular suas glândulas sudoríparas podais, que lentamente destilavam seu líquido para dentro de uma das sacolas, o qual se misturava com a água derretida do chester anteriormente congelado. Enfim, no fundo sabia que não tinha esquecido nada, mas ia chegar em casa, ser espancada por qualquer razão fútil de seu marido etilizado (não confundam com elitizado, por favor!), e então arrumaria alguma coisa pra ter esquecido e voltar novamente ao mercado. Acordaria no dia seguinte bem cedo, umas 7h, provavelmente, enquanto o nobílissimo esposo ainda dormia, fruto dos excessos da noite, se arrumaria (e não arrumar-se-ia, quer mesóclise, vá ler Machado de Assis) e iria pro ponto (de ônibus, mente pervertida!). Pronta pra mais uma jornada na coletividade urbana. Ou urbanidade coletiva, que seja.