segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Desventuras de um jantar a dois

Estava tudo normal. A situação permanecia inteiramente sob controle. Tudo transcorria dentro da mais absoluta normalidade, não havendo, portanto, motivo para nenhum cisco de ansiedade ou temor. Podia ficar tranquilo que aquilo era normal. Normalíssimo. Nada de extraordinário. Mas por mais que permanecesse repetindo mentalmente essa interminável ladainha, nunca ia conseguir se convencer da normalidade dos fatos. Ele era um daqueles tipos medíocres, que não interessa a ninguém, passa despercebido mesmo. Sentia em seu íntimo que o único significado para sua existência era arredondar o número de habitantes do planeta. Fora isso, não tinha nenhuma utilidade. Talvez seu próprio reflexo desse conta de suas tarefas melhor do que ele. Enfim, feitas essas considerações, era incapaz de imaginar uma razão qualquer para o convite que lhe fora feito de manhã pelo estonteante espécime do sexo feminino ora sentado à sua frente. E a absurda irracionalidade desse acontecimento fora suficiente para disparar os mais potentes gatilhos bioquímicos dos quais nosso organismo dispõe para nos colocar em alerta contra possíveis perigos. Ou seja, o ar a seu redor subitamente adquiriu densidade esmagadora, suas narinas dilataram-se em buracos que abarcavam com folga as duas coxas de peru depositadas sobre seu prato, seus lábios crisparam-se num movimento repentino e áspero, revestindo-se de uma secura digna de um Saara, seus poros deram vazão a sucessivas gotas de um suor gélido e abundante, que brotava das reentrâncias mais obscuras de seu corpo, os pelos de sua nuca eriçaram-se com uma rapidez que seu pênis nunca conseguiria imitar, e assim por diante. E a cada trocar de olhos, a cada roçar de pernas minimamente calculado, as batidas de seu coração atingiam patamares cada vez mais preocupantes de aceleração. Nem os incessantes sorrisos acolhedores que lhe eram enviados pelo par de lábios carnudos majestosamente tingidos de vermelho conseguiam acalmar a revolução hormonal que se passava dentro dos inúmeros vasos sanguíneos espalhados por sua superfície corpórea. Todo esse crescendo angustiante, por fim, encontrou um ápice a contento: ao encarar seu rosto refletido na bandeja vazia trazida diligentemente pelo garçom, entendeu: ele era o prato principal.

sábado, 19 de dezembro de 2009

Metafísica do nada

Estava lá. Em algum lugar indefinível pelos milhares de palavras que trazia eternamente escondidas em algum recanto obscuro da memória. Bastava saber que estava lá, e não aqui. Pois aqui não poderia sentir azuis e vermelhos como sentia lá. Com algumas leves nuances de rosa no meio. Talvez isso desse uma resposta definitiva para as perguntas que nunca tivera a coragem de fazer. Ou talvez tudo se resolvesse na infindável espiral de ópio que se via obrigada a encarar, numa tentativa deveras inútil de sobreviver. Lá podia ser metafisicamente, ainda que precisasse de remédios substantivadores para suportar a dor de ter uma alma. Somente lá dera-se conta do absurdamente maravilhoso, que trazia consigo o absolutamente terrível, do qual ninguém consegue escapar a não ser despojando-se de tudo o que traga a mínima ideia de autoconsciência. Lá impunha-se uma rígida disciplina desafiadora, sempre com a vaga - mas persistente - esperança de romper os limites do intransponível. Coisa que não teria condição alguma de pensar caso permanecesse aqui, presa num emaranhado de correntes insolúveis a lhe sorver constantes sopros da mente. De qualquer maneira, continuava saboreando a infinidade de azuis e vermelhos que não cessavam de passar bem na sua frente, tentando extrair deles ao menos uma sombra de roxo para apaziguar os ardentes anseios da vontade. Mas - ironia cruel do destino - lá, apenas lá, caiu em si. E embora todo o universo conspirasse para com isso compor uma possante sinfonia em dó maior, ou também uma alegre sonata indefinida em ré, a única coisa que lhe passou pela cabeça foi a certeza de sua sina inexorável. Por mais que tivesse chegado lá, sua vida não passaria de um eterno tender ao infinito, sempre se dissolvendo em amargas cores e assim tornando-se projeção contínua de um não-eu quase morto. Veja bem, quase. Nunca teria a graça de receber um ponto final que acabasse com suas angústias repentinamente. E, então, quando o lá se convertesse em aqui, estaria novamente perdida, pronta pra se jogar inteiramente no primeiro abismo que encontrasse - para descobrir que dentro do espelho a realidade nunca é o que parece ser.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Amenidades urbano-coletivas

Os sacolejos do ônibus eram particularmente inspiradores naquela situação peculiar. E as andorinhas voavam livres por entre um céu encoberto e áspero. Conversas entrecruzavam-se em saltos acrobáticos mirabolantes até atingirem a suave membrana do tímpano do receptor desejado e de alguns (vários) indesejados. Não tivera muita sorte de conseguir um lugar na cadeira dura, de traços antianatômicos, contra tudo o que pregam os mais experientes especialistas do ramo. Sem contar os odores de múltiplas tonalidades que lhe eram servidos logo acima de suas vias respiratórias aéreas pelas axilas mal lavadas (algum dia teriam sido lavadas?) de algum inoportuno usuário de camiseta regata e de forma alguma consumidor de desodorantes. Um cenário, enfim, como poderíamos defini-lo... coletivamente urbano. Ou urbanamente coletivo, talvez. Para todos os efeitos, convidava a uma profunda reflexão de ordem escatológico-moral sobre o que havia esquecido de comprar no supermercado. Sim, porque, além da infinidade de pequenos detalhes acima expostos, ainda devemos acrescentar um razoável número de sacolas plantadas a seus pés, as quais, num dia de frio, fariam o favor de aquecer o retorcido conjunto de joanetes que trazia grudado a seus tornozelos, mas naquele suave calor de uns 40º na geladeira - calor esse que os ursos polares vão ter de suportar dentro de breves anos, até meses (que o digam os sapientíssimos doutos do IPCC) - serviam apenas para estimular suas glândulas sudoríparas podais, que lentamente destilavam seu líquido para dentro de uma das sacolas, o qual se misturava com a água derretida do chester anteriormente congelado. Enfim, no fundo sabia que não tinha esquecido nada, mas ia chegar em casa, ser espancada por qualquer razão fútil de seu marido etilizado (não confundam com elitizado, por favor!), e então arrumaria alguma coisa pra ter esquecido e voltar novamente ao mercado. Acordaria no dia seguinte bem cedo, umas 7h, provavelmente, enquanto o nobílissimo esposo ainda dormia, fruto dos excessos da noite, se arrumaria (e não arrumar-se-ia, quer mesóclise, vá ler Machado de Assis) e iria pro ponto (de ônibus, mente pervertida!). Pronta pra mais uma jornada na coletividade urbana. Ou urbanidade coletiva, que seja.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Ilogicidade ou Millôr revisitado

Sólidas formações incolores perpassam anis elétricos refulgentes. Corre. Corre corre corre corre corre. Vamos fugir? Não. Não curtia Skank. Não gostava de Skank. Odiava Skank. Foda-se o Skank! Agora anda. Anda... anda... anda... Ainda anda a onda? Ondas não andam. Qualquer um sabe disso. A lápide marmórea convida  para alguma coisa que não seja comer cachorro-quente. Lápides não combinam com cachorros-quentes nem com begônias. O rato passa correndo e entra num buraco. Como não tem enterro, pra que onomatopeias? Será que os outros nunca ouviram ratos passando por aí? De qualquer modo, com toda a certeza já se refugiaram em cavernas labirinticamente intrincadas moldadas por forças ocultas dentro da mente. Pensa. Pensa ... hic... pensa... hic, hic, hic... pen... hiiiic. Não se pode pensar soluçando. Precisa de um susto. Nada melhor do que a terra cheia de minhocas revolventes para acalmar espíritos aflitos e refrescar quenturas nos pés. Os índios andam descalços. E pelados também. Por isso trocam as minhocas por mandiocas. Ou macaxeiras, caro nordestino. Quer dizer, barato, quem manda aquele povo ter tanto filho, depois querem ter altos salários. Pff. Que façam pós-doutorados e depois venham discutir. Ah, pra quem ainda tem alguma esperança, desistam da rapadura, ela é produto japonês. Como diz o ditado, pode ser doce, mas é dura, ou algo do tipo. Quem se importa com sintaxe desde que Bilac morreu? Contudo, nunca se esqueça... oooopaa, quase caiu. Queria era voar. Voooaaaarrr. Livre no ar. Eita rima besta. Não adianta, por mais que tenta acaba saindo. Como merda. Vem nas horas mais impróprias. Pior quando é líquida. Ninguém segura. Putz, teve um insight:: o Brasil não passa de diarreia, como bem previram os militares uns trinta, quase quarenta anos atrás. Agora me diga uma coisa: como pode o peixe vivo viver fora da água fria? Pergunte pro Juscelino, oras. Falando nisso, hora de descansar. E torcer para o sono vir. Senão, santo Sulpan. Ou se não? Talvez senão seja um seno bem grandão que em cima do cossenão vira tangentona. Ah, se Pitágoras tivesse previsto isso... Peraí, cadê o narrador? Deve ter sumido ou ido ao banheiro. Daqui a pouco volta. (...)³ De repente caiu e bateu a cabeça - não disse que ele vinha? O cérebro vazou. Daquele dia em diante, uma poça permanente é vista na calçada.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Feriado na metrópole

A rua deserta. Feriado na metrópole. Praias lotadas, montanhas nem tanto. Mas cidade vazia. Exceto por ele ali naquela rua varrida pelo vento que mais parecia um furacão quase arrancando sua cabeça do pescoço seu olhos secos começando a lacrimejar sua boca impiedosamente entortada suas bochechas querendo cobrir a face toda. Consequência da idade tudo vai caindo como Newton já previra um bocado de tempo atrás e se enchendo daquela flacidez deprimente. Anyway (como diria um daqueles personagens de seriados americanos que ele tanto gostaria de ser meu deus daria tudo pra se tornar um friend da Jennifer Aniston) estava ali, naquela rua, com uma vaga esperança de que poderia enfrentar a fúria eólica (credo que coisa mais greco-latina como odiava isso desde as aulas de literatura se pudesse teria matado Homero Dirceu Marília deitados na relva e não podia se esquecer do crápula que era o Bilac) que parecia não oferecer chance pruma trégua. A bem da verdade mal sabia pra onde andava qual era seu rumo, tinha impressão de que sua casa ficara uns dois quarteirões pra trás mas sentia que precisava seguir em frente. Passou diante do ponto de ônibus em que costumava parar todos os dias pra ir trabalhar. Como sentia nojo daquele monte de papel colado no banco a prefeitura devia fazer algo talvez passasse lá pra bater um lero com o prefeito nossa isso foi demais lero era do tempo do seu tataratataravô. Mas que ironia o vento levou um daqueles papéis direto pro seu rosto, retirou afobado com medo de germes invisíveis como eles faziam mal porém a mensagem que lá estava escrita era exatamente do que precisava nem que fosse encomendado sairia tão bem assim tratou de metê-lo logo no bolso e foi correndo o mais rápido que pôde precisa de um telefone sorte que tinha pagado a conta do seu. Subiu correndo as escadas do predinho de três andares em que morava quase tropeçou como aquela dona caquética que morreu semana passada bem feito pra ela. Abriu a porta do apartamento correndo nossa tinha esquecido quanta bagunça precisava arrumar odiava desordem. Tirou o casaco e começou a catar tudo o que estava espalhado. - Intermezzo: o papel cai do bolso direto no chão. - Tinha acabado mas de repente vê um pedaço de papel no chão que nojo devia ser um daqueles que a gente encontra no ponto de ônibus não pensou duas vezes jogou logo no lixo. De repente, sente algo estranho. Olha pela janela. A rua deserta. Feriado na metrópole.

quinta-feira, 9 de julho de 2009

Dia de chuva

Chovia. De onde estava, só era possível ver a chuva. Água e mais água e mais água caindo sem parar do céu. Ela sabia que não eram bem do céu, na verdade tudo aquilo vinha de insólitas nuvens, tão frágeis, tão informes, tão... esfumaçadas, é, meio óbvio, mas serve. Lembravam o quê mesmo? Ah, sim, algodão doce, claro, todo mundo fala isso, sempre. Uma vez comeu algodão doce num parque de diversão, desses bem vagabundos, que se instalam num terreno baldio qualquer da cidade e atraem um bando de gente pra andar na montanha-russa e no trem fantasma. Mas a atração principal não era esses brinquedinhos bobos: era o tal do Kamu..., Kame..., ou seria Kimu..., não, não, Kamikaze, é, aquele negócio que sobe e deixa todo mundo de ponta cabeça. Não gostava disso, uma vez vomitou e, argh!, como odiava vomitar! Aquela massa informe de comida mal digerida que sobe em velocidade recorde por sua garganta deixando um rastro de ácido clorídrico e que sai em jorros como uma verdadeira fonte de horror se espalhando rapidamente por todo o espaço disponível. É, bem desagradável, ninguém gosta, duvido que discordem. Entretanto... Será que não sentia um medo meio irracional? Medo não é bem a palavra certa. Melhor: será que não sentia uma repulsa meio irracional? Talvez pudesse estar relacionada àquelva vez em que se afogou com o próprio vômito, tinha quatro anos, que susto!, não desejava esse tipo de coisa nem a seu pior inimigo. E tudo graças ao seu adorável irmão, que tinha colocado maionese estragada no seu lanche. Não podia acontecer diferente, mal terminou de comer sentiu-se mal, tentou voltar correndo pra casa, mas escorregou, caiu de costas e pronto, o vômito inundou seus pulmões, causando um desespero meio..., bem melhor não lembrar certas coisas. Agora por que tinha escorregado? Pode ser que tenha pisado no cocô da cachorra. Contudo, ao revisitar o episódio com sua memória, não sentia cheiro, e tinha uma incrível capacidade de reter os odores de cada acontecimento, e por Deus como o excremento da Nina era fedido, beirava o insuportável! Então só podia ser uma coisa: estava chovendo. Na verdade era quase uma tempestade. Água e mais água e mais água caindo caindo caindo...

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Lembrança

Uma lágrima. Só isso. Toda uma vida concentrada naquela mísera gota salgada, resultado de complexas interações entre neurotransmissores de origem incerta e não sabida. Apenas uma lágrima. Fruto de um turbilhão de sentimentos os mais contraditórios possíveis, desencadeados pela simples visão de uma pétala de rosa. Se ainda fosse uma rosa inteira, magnífica em sua beleza rubra, se abrindo para o exterior cheia de graciosidade, vá lá, mas uma única pétala? Sim, exatamente isso. Afinal, não havia métafora melhor para representar anos e anos de afeto, dedicação e respeito que um dia lhe concedera, anos esses simplesmente ignorados em poucos dias, não mais. A pétala solta no meio de corriqueiros redemoinhos provocou verdadeira profusão de imagens em sua mente, sucedendo-se em lampejos repentinos e ofuscantes. Mas já não tinha superado?, diziam as amigas - e os amigos também, por que não?, ainda que teimem em dizer o contrário, existe sensibilidade na alma masculina. A resposta vinha-lhe como um trem desgovernado a subir por sua garganta, inundava sua boca com seu apito estridente, sinal de que queria sair o quanto antes possível. Contudo, selava firmemente os lábios, prendendo tal locomotiva em fúria, engolindo-a de volta e soltando, como se fosse um fiapo de fumaça, alguma de suas manjadas desculpas, sempre do tipo sim, eu tinha, é só que... Enfim, voltando à pétala inicial: quase já não podia vê-la, levada pelo vento, como todos sabem grande aliado do tempo, atuando como implacável desfazedor de registros. Claro que não foi diferente com aquele pobre pedaço de flor. Mas a lágrima continuava lá. Saindo das profundezas de glândulas entranhadas em certo orifícios oculares, tinha brotado de um cantinho do olho para depois escorrer lentamente pela face, como um riacho que aos poucos estabelece seu leito. Até que, passando através da suave elevação dos lábios, chegou ao queixo, de onde, num átimo, caiu ao chão. E secou. Não havia mais pétala. Não havia mais lágrima. Não havia mais nada.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Em defesa dos animais

Ele tinha uma certa quedinha por militâncias. Na juventude, combatera ardorosamente o regime militar, sem nem saber ao certo o que essas duas imponentes palavras representavam. Alguns anos mais tarde, para se manter coerente, virou metalúrgico e foi fazer greve junto daquele mundaréu de gente que se apinhava em frente a um palanque numa cidade qualquer dessa região cinzenta que é o ABC paulista. Deveria ter aproveitado melhor essa época para cortar acidentalmente um ou dois dedos e garantir uma aposentadoria para o resto da vida. Mas seu pensamento nunca fora muito audacioso, de modo que, nestes tempos pós-socialistas, neoliberais, ultracapitalistas ou o diabo que seja, encontrava-se em plena crise de meia-idade, sem dinheiro suficiente para manter um padrão de vida digno de classe B e sem motivo nenhum para combater. Podia ter ficado assim pra sempre e morrido melancolicamente, apagado da História pela dureza do esquecimento. Contudo, uma ideia brilhantemente iluminadora ocorreu-lhe enquanto assistia ao noticiário de uma quarta-feira perdida no tédio pelo qual vinha passando (e não poderia haver dia melhor para que tal coisa acontecesse, afina, convenhamos, por mais que certas propagandas de cerveja tenham tentado inverter a situação, não há dia mais paralisante que quarta-feira, essa coisa inerte jogada entre os demais dias da semana sem absolutamente nenhuma conotação a não ser a de dividi-los - tarefa que realiza muito mal, diga-se de passagem). A ideia era muito simples (como não a tivera antes!): iria lutar pelo direito dos animais. No começo, sentiu uma pontada no fundo do estômago, ao pensar nos deliciosos churrascos que deixariam de entrar por sua boca. Mas, pensando bem, ele não gostava mesmo de carne. Seu apego aos churrascos era mais ligado à presença dos amigos que à própria comida. Sim, definitivamente detestava qualquer tipo de carne! E a partir de então ele fez de tudo para salvar os pobres animaizinhos, desde as ações mais comuns, como participar de passeatas e tornar-se vegetariano, até as mais heterodoxas, como encher seu apartamento de bichos desprotegidos. Obviamente não há casamento que resista a tão fervorosa militância, de modo que numa noite sua mulher fez as malas e rumou para a Patagônia (?) para nunca mais ser vista. E a vida do homem continuou nessa mesma toada, e poderia ter terminado assim, não fosse seu filho morrer de câncer, razão pela qual ele ficou totalmente louco um tempo depois. Ora, você certamente pensou, a morte é algo meio forte, porém não o suficiente para abalar alguém de convicções tão fortes como esse cara aí. Calma, leitor. Explico-lhe já: o menino morreu porque seu pai proibiu que lhe fossem administrados os devidos remédios. O motivo para essa atitude irracional? Antes de chegar ao mercado, o coquetel fora testado em indefesos camundongos.

P.S.: créditos à Comvest (Unicamp), pelo gancho inconscientemente concedido através de uma das propostas de redação do vestibular 2009.

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Corrida

Precisava correr. Não sabia por que. Nem pra quê. Ou melhor, até sabia, mas, no momento, essa informação fora confinada a um cantinho obscuro da vasta rede neuronal por nós conhecida como encéfalo. Sua mente funcionava assim: só conseguia se concentrar numa coisa por vez. Portanto, como agora a única coisa que importava era correr até o máximo que podia suportar, não pensava em mais nada além de enviar impulsos elétricos aos músculos da perna para que continuassem se movimentando. E assim percorria extensas avenidas, becos obscuros, ruas tranquilas de subúrbios, enfim, todos esses prazenteiros lugares encontrados em qualquer metrópole que se preze. Nosso relato podia acabar bem aqui, estendendo-se a corrida desse personagem desinteressante por um tempo indefinido. Mas (e lá vem a conjunção coordenativa adversativa, pra anular totalmente tudo o que se disse antes), só o fato de nos termos dado ao trabalho de construir esse relato evidencia que o final dessa história não foi tão simples assim. Num determinado momento, o sujeito parou de correr. Tinha um motivo pra isso, claro: ele acabara de perceber quão bonita era a paisagem ao seu redor. Como podia continuar correndo enquanto passava por magníficas lixeiras atulhadas até a boca dos mais poéticos detritos, enquanto ouvia o suave e instigante barulho do tráfego,  uma verdadeira sinfonia de buzinas e escapamentos, enquanto respirava aquele ar saturado de poluentes, em quantidade bem superior às 4000 e poucas substâncias tóxicas encontradas no cigarro? Sem contar naquele magnífico céu de inversão térmica, em que as cores da poluição superavam qualquer aurora boreal que um dia pudesse ver.E então decidiu parar e apreciar os lindos aspectos que permeavam sua existência cotidiana. Afinal, a vida é uma só, e tinha certeza de que em paraíso nenhum poderia encontrar semelhante conjuntura de singularidades como as que se lhe apresentavam naquela cidade. Estava a meditar sobre esses assuntos de profundidade inquestionável quando ouviu um estampido terrificante  e sentiu um impacto em sua nuca, logo seguido pela sensação do sangue quente escorrendo por suas costas. Foi aí que se lembrou de por que corria desabaladamente, de por que não devia parar de correr em momento algum (lembrança essa fatalmente olvidada, como bem se percebeu): estava fugindo da polícia.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Suicídio

Quando será que decidira se matar? Bem, pergunta difícil de responder. Não foi assim um insight, aquele tipo de iluminação com direito a trilha sonora e tudo. Mas também não foi resultado de um planejamento de longo prazo. Aliás, ele detestava planejamentos. Sua decisão ficava num meio termo entre esses dois extremos. A ideia vinha lhe visitando faz algum tempo. Como um pensamento meio passageiro, mas recorrente. Daqueles que a gente tem enquanto está na privada e não há nada para ler ou sofre com noites intermináveis de insônia. O motivo? Sinceramente, ele desconhecia. Quer dizer, podia selecionar qualquer um dos vários infortúnios por que passara em sua vidinha medíocre, desde os mais dramáticos (como matar acidentalmente o filho por tê-lo esquecido dentro do carro) até os mais fúteis (no caso, a barriguinha de chope, sempre incomodando). De qualquer forma, pelo que recordava, a certeza viera-lhe durante o banho, na noite anterior, no exato momento em que passava o sabonete por sua virilha esquerda. Depois de decidir, restava escolher o método. Nunca fora afeito a emoções muito fortes, por isso descartou logo se atirar pela janela do décimo andar, se enforcar, se afogar e outras coisas do gênero. Considerou tomar meia dúzia de comprimidos para dormir, mas aí poderia morrer no meio de um sono, ou até de um pesadelo, o que seria horrível sob qualquer ponto de vista. Se tivesse um revólver, atiraria em si mesmo, mas, como fica claro com o uso do subjuntivo, essa hipótese já nasceu impossibilitada de ocorrer. Por fim, resolveu tomar um restinho de veneno de rato, guardado num canto obscuro da despensa. Acordou bem cedo no dia de sua morte. Foi ao banheiro, tomou café, escovou os dentes. Colocou o veneno num copo com água e dirigiu-se ao seu quarto. Queria morrer bem ali, onde passara algumas das piores (e uma ou outra boa) horas da sua vida. O clima não podia ser mais bem apropriado.  Quando aproximou o copo da boca, ouviu a porta do apartamento se abrindo. Em seguida, passos cambaleantes. Era sua esposa. Desde a morte do filho, saía para beber todos os dias, e voltava cada vez mais deplorável. Ele esperou. Quem sabe ela não fizesse com que mudasse de opinião. Após alguns tropeços, seguidos de sonoros palavrões, ela entrou no quarto. Olhou para os olhos do marido. Ele sentia que alguma coisa sairia daquela boca, as palavras mágicas, transformadoras, palavras que ele esperara ouvir durante sua vida inteira, mas que nunca chegaram. Mesmo bêbada, ela entendeu mais ou menos o que estava acontecendo. E sentiu algo crescer dentro dela, algo que precisava pôr pra fora, que se debatia incontrolavelmente. A tensão chegou a níveis insuportáveis. Até que ela falou: "Seu desgraçado, você não pagou a fatura do cartão!" Bem, caro leitor, creio que você pode imaginar o que aconteceu depois.

sábado, 3 de janeiro de 2009

Felicidade

Ela acordou especialmente feliz naquele dia, tomada por uma felicidade incrível, não do tipo que se experimenta quando se compra ou se come (em todos os sentidos possíveis) algo desejado. Era um tipo de felicidade que atuava como um divisor de águas, como se a vida dela antes daquele dia fosse um passado morto, enterrado e esquecido para todo o sempre amém. Ela se sentia mais que onipotente. Sim, porque muitas pessoas, quando arrebatadas por surtos de euforia, pensam poder se jogar de prédios ou na frente de automóveis que nada lhes acontece. Mas ela estava além disso. Sabia que não precisava fazer nada pra se convencer do quanto estava feliz. Era como se soubesse de um segredo crucial, como a origem da vida, e não quisesse partilhá-lo com ninguém, apenas desfrutar do conhecimento e deleitar-se com isso. Enfim, essa parca descrição dá uma leve ideia (reforma ortográfica já começou ¬¬) do que se passava na mente de uma jovem qualquer num dia de, vejamos... outono, sim, estação adequada. Agora, ela precisava descobrir a fonte dessa felicidade, para que não corresse o risco de perdê-la. E não foi muito difícil encontrá-la: ora, ela estava apaixonada. O que mais, além do amor, poderia provocar algo assim? Era inevitável que, após essa constatação, viesse uma segunda pergunta, tão ou mais importante que a primeira: por quem ela estava apaixonada? Bem, poder-se-ia ver seu sorriso zombeteiro, como a dizer  que importa, isso é o de menos. Ela apenas precisava sentir o amor pulsar em suas artérias, deslizar por sua pele como amarras de seda, que nos seduzem ao mesmo tempo que nos prendem. Estava decidido. A partir daquele dia, estava apaixonada, e isso lhe deixava muito feliz, e não ligaria para mais nada além disso. Ponto. Tinha resolvido. Ah, que sensação boa essa de abandonar-se ao sentimento sem nenhuma preocupação, de ser preenchida por ele sem sentir remorso ou até mesmo medo! Seria realmente maravihoso se tudo acabasse com essa frase, com um típico final feliz. Mas não. No dia seguinte, encontraram-na morta, pendurada por uma corda em seu quarto. O motivo do suicídio? É óbvio que os policiais ou outras pessoas que a viram não têm a mínima noção do que seja, afinal eles não são dotados da capacidade de perscrutar o mais íntimo refúgio da mente das pessoas, mas não deixarei meu caro leitor na mão, já que me foi dado conhecer a triste história dessa garota: ela engordara dois quilos desde a última vez que se pesara.

P.S.: Porque a loucura tem muitas faces, resta descobrir qual delas trazemos conosco.