quarta-feira, 14 de abril de 2010

Perfeição: a experiência genética

Muito já se escreveu sobre prodígios da ciência, muitas foram as projeções que se fizeram ao longo dos anos sobre as maravilhas que nos seriam proporcionadas por esse monstro voraz chamado saber científico, porém nada foi mais audacioso (nem nunca será, suponho) do que a pretensão de um certo cientista, determinado a encarnar a perfeição em seio humano.
Sim, o sonho de ser perfeito, presente em todas as civilizações desde tempos imemoriais, parecia possível naqueles primeiros lustros do século XXII, graças à invenção do referido cientista: o acelerador genético. O nome, pomposo, logo caiu no gosto dos veículos de comunicação, de forma que, de repente, o planeta inteiro fervilhava com o mais novo engenho desse bicho autodenominado sabido.
Restava uma questão em aberto: quem iria participar do tão celebrado experimento? Por meios incertos e desconhecidos, foram selecionadas quatro crianças, sendo eu uma delas, para cumprirem o venturoso destino de se tornarem perfeitas e, posteriormente, iluminarem o resto da humanidade com essa dádiva. Ora, já não éramos tão pequenos, tínhamos nossa própria noção de mundo. Por isso, uma observação atenta do período em que fomos "acelerados" poderia prever as tortuosas consequências dessa empreitada.
Assim que adentramos o imponente saguão do prédio onde funcionaria a máquina, fomos batizados com números. Posto ser o 4, relatarei de início a conduta de meus companheiros para depois discorrer sobre mim.
Encolhido em algum canto, 1, menino mirrado, marmoreamente branco, olhos embaçados, leitosos, emoldurados por rouxidões impenetráveis, vivia a choramingar, mergulhado num golfo de tristeza sem fim, que o mantinha afastado de nossas brincadeiras e fazia-o soltar gélidos gemidos durante o sono (especulávamos que tal condição resultava de profundos traumas freudianos). 2, por seu turno, trazia os dedos, delgados e escorregadios, sempre ágeis, prontos a capturar o que lhe agradasse; olhava ávido e guloso para tudo e todos, seus lábios curvando-se para cima num maquiavélico sorriso (características bem justificadas, dado que ele vinha de uma tradicional família de mafiosos italianos - cujo poder deve ter imposto a participação na experiência). Já 3 era, de longe, o mais eloquente: tinha o hábito de discursar para plateias invisíveis, conquistando imensa admiração por parte dos cientistas e deixando-nos profundamente aborrecidos (mas, fazer o quê, seu progenitor era um influente político, sinal de que o nepotismo se infiltra nos lugares mais insuspeitos). Enfim, havia eu, menino pacato, fala tranquila, sem ambições na vida; digamos que me configurava como um representante exemplar da sociedade, ou, em linguagem mais clara, era um típico zé-ninguém da classe média.
Bem, creio que, a essa altura, o leitor já seria capaz de imaginar os resultados daí provenientes, mas, por desencargo de consciência, deixarei tudo bem explicitado.
Ao final do confinamento, 1 mostrou-se um depressivo perfeito, e, como não poderia deixar de ser, sublimou-se com a glória maior dos desesperados, eternizada na prosa de um certo alemão: suicidou-se, espantando a todos os que se entusiasmaram com o invento do século. Não foi só isso, contudo. 2 tornou-se o criminoso perfeito, cappo de dar inveja a Marlon Brando, alçando sua máfia ao comando efetivo das mais altas instâncias do poder. 3 saiu o político perfeito, elegeu-se presidente da República com aclamação popular que nenhum César jamais experimentou e permanece até hoje no cargo, dobrando qualquer opinião contrária com sua retórica milagrosa.  Eu, o quarto participante, de nunca esperar nada na vida, converti-me num perfeito ninguém, a quem apenas a idade trouxe a sabedoria e o discernimento. 
O mais engraçado dessa história toda é que, se o tal cientista que criou e pôs em prática esse projeto de aceleração genética tivesse lembrado os dizeres daquele simpático físico brincalhão, que posava pra foto com a língua de fora, entenderia que não existe perfeição absoluta e se resignaria a ver em cada pessoa um infinito de possibilidades, algumas prestes a se realizar, muitas fadadas ao completo limbo da inexistência.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Carnaval

Ruas intermináveis descortinavam-se à sua frente, convidativas como brigadeiros e beijinhos daquela festa que nunca teve. Tudo era motivo de lágrimas, em plena agitação geral, quase uma convulsão febril coletiva, que revolucionava os espíritos num transe anímico de proporções bestiais. Mas, como se disse, tudo era motivo de lágrimas. Risos, cantos, pulos, a efervescência dos hormônios transbordando por poros rasgados ao vento, prostituídos, à espera de um consolo abrasador. E no meio disso, lágrimas, intermitentes lágrimas, incômodas lágrimas, inefáveis lágrimas. Tantas ocasiões mais propícias, e elas calharam de vir à tona logo ali, no mais inoportuno dos momentos e no mais inconsequente dos lugares. Sorte sua não lhe prestarem muita atenção: a música acabara de atingir o que parecia seu ápice, subindo a picos cada vez mais elevados de uma energia incontrolável. Um desavisado qualquer seria brutalmente surpreendido pelo arroubo frenético que possuía a todos, mas ele já estava acostumado a esses ciclos contínuos de explosão. Perguntava-se, aliás, por que não explodia também, porque não esquecia a tristeza que lhe engolfava a alma e liberava seu corpo à ação extasiante das dopaminas e endorfinas prontas a mergulhá-lo no mais incrível dos prazeres. A cada pensamento desse, contudo, só reagia banhando seu rosto mais uma vez com o néctar supremo dos fracos e deprimidos. E quando porventura resolvia levantar a cabeça, secar os redondos zigomas que sustentavam suas monstruosas bochechas, deparava-se com aquele amontoado de ruas, como se estivessem estendendo-lhe uma mão invisível ou sussurrando-lhe ao pé do ouvido uma mensagem incompreensível, vinda de quem menos esperava - e, àquela altura, incapaz de acender nele uma faísca sequer de esperança. Restava-lhe, pois, chorar e chorar e chorar, ao som da música que tocara na festa que nunca teve.