segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Lixo

Jogar alguma coisa fora já exige, por si só, grande força de vontade. Por mais inútil que seja o objeto, sempre fica aquela duvidazinha, do tipo e se eu sentir falta desse troço tão fofinho, será que não entro em depressão? E com ela não aconteceu diferente. Desde criança tinha trauma de desapegar-se das coisas. Nunca se esquecera daquele episódio com a bonequinha do seu quinto aniversário. Sempre gostara dela, até que, num belo dia... Bem, tenho certeza de que é uma história super comovente, de arrancar lágrimas dos corações mais insensíveis, mas ela não vem ao caso. Quem sabe uma outra hora. A questão é que a moça estava diante da lata de lixo (num beco qualquer, pra variar) decidindo-se sobre o destino daquilo em suas mãos. Não que fosse algo essencialmente essencial. Poderia muito bem viver sem isso. Porém, já tinha criado um vínculo afetivo com o que segurava. Quase chegara a amá-lo. É, pode parecer coisa de melodrama mexicano. E, no fundo, acaba sendo mesmo. Já estava lá há quatro horas. Incrível como alguém consegue passar esse tempo todo em pé, num lugar totalmente obscuro, e ainda por cima de noite (esqueci-me de comentar esse detalhe). Sentia que, não importava o quanto pensasse, nunca conseguiria se decidir. Afinal, tinha uma história com aquilo. Bem profunda até. Conviveram juntos durante um tempo razoável, partilharam das mesmas emoções, eram cúmplices. Será que agiria corretamente pondo um fim nisso desse jeito? Um vento soprou. Forte. E gelado. Com o uivo característico dos ventos fortes e gelados (dos quais ela, particularmente, não gostava). Interpretou com um sinal de que devia decidir. Fechou os olhos, respirou fundo. Visualizou em sua mente o que trazia firme entre seus dedos. Que começavam a formigar, tamanha era a intensidade com que os apertava. Uma lágrima escorreu pelo seu rosto. Enfim, ergueu a tampa da lixeira e jogou lá dentro o feto abortado. 

sábado, 18 de outubro de 2008

Amor, e nada mais

Parecia um sonho. Daqueles perfeitos. Que você continua a sonhar mesmo acordado. Tudo estava como ele imaginara. O cenário maravilhoso. Ela deslumbrante à sua frente. É muito difícil encontrar pessoas idealistas hoje em dia, mas ele acreditava que podia realmente ser feliz do jeito que sempre desejou. Aproximaram-se. A luz inundava-lhes os corpos, quente, aconchegante, brindando seu amor. Meu Deus, que coisa boa sinto, que paz, que emoção! Aproximaram-se. A pele dela parecia ainda mais macia. Acariciou sua face. Aqueles lábios vermelhos, voluptuosos, pediam ardentemente por um beijo. E ele não pôde resistir. Nem queria. Seu corpo inteiro também implorava por isso. Suas bocas enfim se encontraram, num encaixe perfeito. Naquele momento, o mundo inteiro rodou ao redor deles. A paixão transpirava por seus poros. Seus corações aqueciam o ar do ambiente. E por mais que se descreva, nunca sequer se roçará a superfície do sentimento que entre eles imperava. Era de uma intensidade enorme, gigantesca. Eles se completavam. Inteiramente. Plenamente. Ele sentia uma explosão dentro de si, que na verdade inundava seu corpo de paz, numa dessas contradições que apenas quem ama sabe explicar. Precisava continuar nessa conexão pra sempre. O beijo, infinito. Respirar? Para quê? Mantinham-se mutuamente. Atingiram tal grau de sublimidade que não possuíam mais as necessidades orgânicas dos pobres mortais. Sentia-se perfeito. De repente, um leve receio. Transformado em medo. Depois, pavor. Terrível. Percebia com clareza. Mas não ia deixar. Nunca estivera tudo tão bom. Doce ilusão. Sabia que aquela hora chegaria. Ela sempre chega. Para destruir-lhe a felicidade. No ápice daquele amor, as cortinas fecharam-se. Ouviu os aplausos do público. A peça findara. Mais uma vez. 

P.S.: Uma homenagem aos atores, em especial Nícholas Mendes e Juliana Galante, que também são excelentes escritores.

domingo, 12 de outubro de 2008

Elevador

Era o Sr. D. Sempre fora referido por pronomes de tratamento, infames pronomes que nos despersonalizam. Bom dia, Sr. D. Boa tarde, Sr. D. Como vai a esposa, Sr. D.? Ele passava cada minuto odiando tudo isso. Justamente por causa da imensa superficialidade que permeava suas relaçõas. Nem o casamento escapava. Sabia muito bem que sua mulher se unira a um sobrenome e a uma conta corrente. Já tinha se cansado. A morte? Não, era covarde demais pra ela. Sim, podem chamá-lo de bundão. Literalmente até. Pesava, por baixo, uns 120 quilos. Em resumo, vivia pateticamente, falava pateticamente, vestia-se pateticamente e não fazia sexo desde sua lua-de-mel (o que já seria suficiente pra levar alguém à loucura, mas o Sr. D. refugiava-se nas latas de sardinha - gosto não se discute...). Sei que você já deve estar farto de ler tanta coisa inútil. Cansa mesmo. Por incrível que pareça, porém, nem tudo na vida do Sr. D. era uma hemorróida irremediável. Ele possuía um local secreto, mágico, onde podia libertar-se e ser o que quisesse: o elevador privativo, que ficava em sua sala, no último andar do prédio no qual estava instalada sua empresa (cujos negócios eram absolutamente sem graça, se não me engano comércio internacional de palitos de fósforo). Quando entrava no elevador, o homem  se transformava, dava vazão aos sentimentos mais íntimos de seu coração, realizava fantasias impublicáveis. Inclusive, um dia desses, chegou a..., não, melhor não dizer. Eram esses breves instantes que lhe davam forças pra viver. No elevador, criava o seu mundo. Apenas ele e o espelho. E isso bastava. Mais até: chegava a ser perfeito! Coitado. Esquecera-se do circuito interno de vigilância.

sábado, 4 de outubro de 2008

Tango

Ao som do tango, dançava. Ele bem grudado ao seu corpo. Rodopios frenéticos acompanhados por olhares provocadores. Rosas ao redor. A única luz do ambiente vinha por meio das velas, que espalhavam languidamente suas chamas. A música seguia num crescendo contínuo. Os movimentos atingiam seu auge. Sua alma extasiava-se. Sempre gostara de tango. Chegou a fazer algumas aulas, mas por motivos técnicos (leia-se falta de dinheiro) foi obrigada a abandoná-las. Mas isso não tinha importância alguma. Ele a guiava tão bem! De repente o salão ficou demasiadamente pequeno para eles. Precisavam de mais, cada vez mais. O tango exerce esse poder. Inflama paixões. Atinge os corações mais inatingíveis. Desperta desejos. Voluptuosamente. Exacerba a sensualidade. Os amores tornam-se incontroláveis. Impossível resistir. Por mais que ela quisesse, por mais que ela tentasse... Seus lábios fundiam-se numa conexão impenetrável, seus corpos formavam um único organismo, pulsante, ardente, frenético. O ritmo da música integrara-se ao ritmo de seu sangue, tudo era uma mesma coisa, o mundo resumia-se àquilo. Mas ainda precisavam de mais, cada vez mais. Viu-se nua ao lado dele. Onde? Quando? Não sabia, não queria saber. Sentia apenas seus corpos, juntos, para sempre. Era isso que sempre tinha pedido aos céus. Nem que fosse por só uma noite. Estavam cada vez mais entrosados, aproximando-se do ápice daquele louco e delicioso amor. Do nada vem um clarão. Tudo some. Ouve berros. O que está acontecendo? Cadê ele? Cadê a música? Pisca com força. Ao seu lado, um policial. Nossa, como está frio! Olha para frente. Agarrava um poste com força. Sua roupa no chão. Tudo não passara de atentado violento ao pudor.