Jogar alguma coisa fora já exige, por si só, grande força de vontade. Por mais inútil que seja o objeto, sempre fica aquela duvidazinha, do tipo e se eu sentir falta desse troço tão fofinho, será que não entro em depressão? E com ela não aconteceu diferente. Desde criança tinha trauma de desapegar-se das coisas. Nunca se esquecera daquele episódio com a bonequinha do seu quinto aniversário. Sempre gostara dela, até que, num belo dia... Bem, tenho certeza de que é uma história super comovente, de arrancar lágrimas dos corações mais insensíveis, mas ela não vem ao caso. Quem sabe uma outra hora. A questão é que a moça estava diante da lata de lixo (num beco qualquer, pra variar) decidindo-se sobre o destino daquilo em suas mãos. Não que fosse algo essencialmente essencial. Poderia muito bem viver sem isso. Porém, já tinha criado um vínculo afetivo com o que segurava. Quase chegara a amá-lo. É, pode parecer coisa de melodrama mexicano. E, no fundo, acaba sendo mesmo. Já estava lá há quatro horas. Incrível como alguém consegue passar esse tempo todo em pé, num lugar totalmente obscuro, e ainda por cima de noite (esqueci-me de comentar esse detalhe). Sentia que, não importava o quanto pensasse, nunca conseguiria se decidir. Afinal, tinha uma história com aquilo. Bem profunda até. Conviveram juntos durante um tempo razoável, partilharam das mesmas emoções, eram cúmplices. Será que agiria corretamente pondo um fim nisso desse jeito? Um vento soprou. Forte. E gelado. Com o uivo característico dos ventos fortes e gelados (dos quais ela, particularmente, não gostava). Interpretou com um sinal de que devia decidir. Fechou os olhos, respirou fundo. Visualizou em sua mente o que trazia firme entre seus dedos. Que começavam a formigar, tamanha era a intensidade com que os apertava. Uma lágrima escorreu pelo seu rosto. Enfim, ergueu a tampa da lixeira e jogou lá dentro o feto abortado.