domingo, 21 de dezembro de 2008

Apenas um beijo

Ela estava tão feliz! Tinha esperado semanas, meses, até mesmo anos para aquele momento. Nunca pensara que um dia ele finalmente olharia pra ela, a menina tímida de óculos e cabelos crespos sentada na segunda carteira da fileira do meio. É, tudo bem que agora ela tinha feito escova progressiva, algumas luzes e usava lentes de contato, mas ainda assim achava-se pouco frente à beleza fenomenal dele. Deus grego? Não, muito mais que isso. A começar pelos olhos azuis amendoados, que contra a luz adquiriam um leve brilho verde. Depois aquele corpo, másculo e suave, como se fosse esculpido pelas mãos de um Michelangelo. Ah, ia se esquecendo da boca, emoldurada por lábios carnudos, um convite irrestível à volúpia. E os cabelos, eternamente despenteados, loiro-acastanhados, cortados bem curtos. Enfim, tudo nele fazia com que seu coração acelerasse, seus olhos brilhassem, sua respiração ficasse ofegante. Tanto que quase teve um infarto fulminante ao receber aquele telefonema. Pra dizer a verdade, estava até irritada naquele dia, depois de penar com o trânsito horrível e com as grosserias de seu adorável chefe. Disse alô um tanto brusca, mas quando ouviu sua voz de veludo tudo mudou, chegou mesmo a perder a fala. E quando ele fez o convite, então... Podia ouvi-lo dizer encontre-me amanhã à noite no parque do..., preciso muito te beijar. E desligou o telefone. Ela chegou antes do fim do pôr-do-sol. Deleitava-se com a espera. Imaginava ardentemente ele chegando, aproximando-se dela, meu Deus quanta alegria! Às oito e trinta e cinco ele desceu do seu carro e caminhou até ela. Olhou-a nos olhos. Foi levando sua cabeça bem perto da dela, até seus lábios roçarem-se de leve, como se estivessem tímidos ou receosos. Depois, ele abriu sua boca devagar e deixou sua língua encontrar-se com a dela, numa brincadeira travessa de esconde-esconde. Explorou as bochechas, o palato, todas as reentrâncias com as quais entrava em contato através daquele beijo. Era indescritível o sentimento que ela experimentava. Gozo maior não poderia haver. Não existia passado nem futuro, sua vida era o presente, ali, com ele. Nossa, que sensação maravilhosa sentia! Estava tonta de tanto prazer! Inundava-lhe um gosto estranho, sublime, era o seu corpo entrando na ebulição apaixonada que sua mente já desfrutava há muito tempo. Ela enfim desfaleceu. Ele afastou-se lentamente. Retirou o punhal do ventre dela. Limpou o sangue em sua roupa e foi embora. O corpo ficou caído, com o último sorriso petrificado para sempre.

P.S.: "Mas o covarde mata com um beijo" - Mal Secreto.

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Um conto de Natal

O Natal estava próximo. Mas ele não tinha absolutamente um espírito natalino naquele momento. Por quê? Olha, se ele quisesse, podia contar as mais comoventes e drmáticas histórias que um ser humano pode vivenciar, afinal ele era escritor, imaginação não lhe faltava. Só que ele preferia ser sincero: não tinha nenhum motivo aparente pra estar naquele baixo astral em pleno dezembrão. Apenas sentia o vazio dentro de si. Um vazio tremendo, gigantesco mesmo, mas também impenetrável. Não adiantava fuçar de quem era a culpa. Nenhum trauma de infância, nenhum problema no emprego, e de forma alguma impotência sexual. Também não se sentia vítima do consumismo desenfreado. Ele se adaptava muito bem a esse estilo de vida. Dava graças a Deus por ser desprovido de preconceitos moralizantes, como ele costumava tachar essa dificuldade que as pessoas têm de aceitar as imposições do titio Capitalismo. Enfim, padecia de um mal sem causa, que o levara até a praça central da cidade, onde agora se encontrava. Estava bem diante da fonte, cuja iluminação fora inaugurada recentemente. A água subia vermelha, ou melhor, brilhantemente vermelha, a cor escolhida para representar o entusiasmo natalino que se alastrava por todo o planeta. Quem dera ele pudesse fazer parte dessa multidão que se encantava com algo tão singelo como a fonte, em seu eterno circular de água iluminada. Olhou o relógio. Já era tarde. Precisava voltar pra casa. Não que sua mulher fosse ciumenta. Mas ele precisava dormir, um novo dia de trabalho aguardava-o amanhã.  Deu uma última olhada na fonte. Virou-se. Colocou a mão no bolso para pegar as chaves do carro. Sentiu um baque na cabeça. Caiu. Quando acordou, estava num lugar semelhante a um porão rochoso, muito úmido. Encontrava-se sentado numa cadeira reclinável, dessas que se encontram facilmente em consultórios de dentistas. Sentia uma leve ardência no braço direito. Olhou e percebeu que havia um agulha enfiada nele, conectada a uma mangueira, por onde seu sangue escoava. Quando deu-se conta onde essa mangueira dava, gritou. Gritou forte. Alto. Berrou mesmo. Estava horrorizado. Ninguém apareceu para lhe ajudar. Então era isso? Assim que tudo aquilo acabaria? Não queria acreditar, mas sabia no seu íntimo que não havia escapatória. Afinal, a água da fonte tinha de continuar vermelha.