quinta-feira, 9 de julho de 2009

Dia de chuva

Chovia. De onde estava, só era possível ver a chuva. Água e mais água e mais água caindo sem parar do céu. Ela sabia que não eram bem do céu, na verdade tudo aquilo vinha de insólitas nuvens, tão frágeis, tão informes, tão... esfumaçadas, é, meio óbvio, mas serve. Lembravam o quê mesmo? Ah, sim, algodão doce, claro, todo mundo fala isso, sempre. Uma vez comeu algodão doce num parque de diversão, desses bem vagabundos, que se instalam num terreno baldio qualquer da cidade e atraem um bando de gente pra andar na montanha-russa e no trem fantasma. Mas a atração principal não era esses brinquedinhos bobos: era o tal do Kamu..., Kame..., ou seria Kimu..., não, não, Kamikaze, é, aquele negócio que sobe e deixa todo mundo de ponta cabeça. Não gostava disso, uma vez vomitou e, argh!, como odiava vomitar! Aquela massa informe de comida mal digerida que sobe em velocidade recorde por sua garganta deixando um rastro de ácido clorídrico e que sai em jorros como uma verdadeira fonte de horror se espalhando rapidamente por todo o espaço disponível. É, bem desagradável, ninguém gosta, duvido que discordem. Entretanto... Será que não sentia um medo meio irracional? Medo não é bem a palavra certa. Melhor: será que não sentia uma repulsa meio irracional? Talvez pudesse estar relacionada àquelva vez em que se afogou com o próprio vômito, tinha quatro anos, que susto!, não desejava esse tipo de coisa nem a seu pior inimigo. E tudo graças ao seu adorável irmão, que tinha colocado maionese estragada no seu lanche. Não podia acontecer diferente, mal terminou de comer sentiu-se mal, tentou voltar correndo pra casa, mas escorregou, caiu de costas e pronto, o vômito inundou seus pulmões, causando um desespero meio..., bem melhor não lembrar certas coisas. Agora por que tinha escorregado? Pode ser que tenha pisado no cocô da cachorra. Contudo, ao revisitar o episódio com sua memória, não sentia cheiro, e tinha uma incrível capacidade de reter os odores de cada acontecimento, e por Deus como o excremento da Nina era fedido, beirava o insuportável! Então só podia ser uma coisa: estava chovendo. Na verdade era quase uma tempestade. Água e mais água e mais água caindo caindo caindo...

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Lembrança

Uma lágrima. Só isso. Toda uma vida concentrada naquela mísera gota salgada, resultado de complexas interações entre neurotransmissores de origem incerta e não sabida. Apenas uma lágrima. Fruto de um turbilhão de sentimentos os mais contraditórios possíveis, desencadeados pela simples visão de uma pétala de rosa. Se ainda fosse uma rosa inteira, magnífica em sua beleza rubra, se abrindo para o exterior cheia de graciosidade, vá lá, mas uma única pétala? Sim, exatamente isso. Afinal, não havia métafora melhor para representar anos e anos de afeto, dedicação e respeito que um dia lhe concedera, anos esses simplesmente ignorados em poucos dias, não mais. A pétala solta no meio de corriqueiros redemoinhos provocou verdadeira profusão de imagens em sua mente, sucedendo-se em lampejos repentinos e ofuscantes. Mas já não tinha superado?, diziam as amigas - e os amigos também, por que não?, ainda que teimem em dizer o contrário, existe sensibilidade na alma masculina. A resposta vinha-lhe como um trem desgovernado a subir por sua garganta, inundava sua boca com seu apito estridente, sinal de que queria sair o quanto antes possível. Contudo, selava firmemente os lábios, prendendo tal locomotiva em fúria, engolindo-a de volta e soltando, como se fosse um fiapo de fumaça, alguma de suas manjadas desculpas, sempre do tipo sim, eu tinha, é só que... Enfim, voltando à pétala inicial: quase já não podia vê-la, levada pelo vento, como todos sabem grande aliado do tempo, atuando como implacável desfazedor de registros. Claro que não foi diferente com aquele pobre pedaço de flor. Mas a lágrima continuava lá. Saindo das profundezas de glândulas entranhadas em certo orifícios oculares, tinha brotado de um cantinho do olho para depois escorrer lentamente pela face, como um riacho que aos poucos estabelece seu leito. Até que, passando através da suave elevação dos lábios, chegou ao queixo, de onde, num átimo, caiu ao chão. E secou. Não havia mais pétala. Não havia mais lágrima. Não havia mais nada.